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Alojamento local “não é o culpado” pela falta de habitação

Alojamento local “não é o culpado” pela falta de habitação
Mesa redonda de debate. Alojamento local: o impacto na dinâmica de reabilitação urbana.

Depois da desaceleração imposta pela pandemia, o setor do turismo recuperou a grande velocidade, trazendo consigo a recuperação da hotelaria e do alojamento local. Contudo, em particular, o alojamento local enfrenta grandes desafios, nomeadamente o impacto do programa Mais Habitação.

Da suspensão de emissão de novas licenças fora das zonas de baixa densidade e das regiões autónomas, à nova contribuição extraordinária, qual o futuro do alojamento local em Portugal? É possível regular sem proibir? A sessão “Alojamento local: o impacto na dinâmica de reabilitação urbana” centrou-se no debate aprofundado destes temas, com apresentações e uma mesa-redonda composta por especialistas no setor.

Para dar início à sessão, foi apresentado o estudo "Avaliação do impacto do alojamento local", por Pedro Brinca, Professor da Nova School of Business and Economics, que concedeu uma perspetiva das pessoas ligadas ao setor do alojamento local. O estudo traz uma contribuição metodológica: medir qual é a presença no alojamento local em Portugal e a sua ligação com o turismo, o impacto na economia e a opinião das pessoas que trabalham no setor face às medidas do Mais habitação.

62% dos proprietários de AL investiram na reabilitação do imóvel

O inquérito focou-se no conjunto alargado de pessoas que exploram ou são proprietárias de alojamento local. Os dados referem-se a junho de 2023, abrangendo 1.820 respostas validadas de proprietários e agentes. Alguns dados partilhados ao longo da apresentação, indicam que 62% dos titulares de alojamento local são pessoas singulares e pequenos proprietários e a maioria dos proprietários tem apenas 1 alojamento e 80% têm menos de três. Outro dado interessante é o facto de que 62% dos proprietários investiram na reabilitação do imóvel para poder explorá-lo.

O estudo revela ainda que para a economia portuguesa em 2019, o total de contribuição das despesas de turistas que ficaram alojados em alojamento local representa a importância do setor: correspondeu a cerca de 9,9 mil milhões de euros, em termos de PIB, e a cerca de 306 mil indivíduos em termos de emprego. Quanto ao impacto do Mais habitação, um número substancial de inquiridos, pouco acima dos 50%, considera que o programa é um risco de encerrar a atividade, e um número equiparado diz que deve conseguir manter a atividade, porém vai ter de reduzir em outros custos para compensar o impacto do Mais Habitação.

Na segunda apresentação da sessão, João Vacas, Consultor da Abreu Advogados, concedeu uma visão do impacto do alojamento local e as consequências do Mais Habitação. O consultor atentou para os os dados que o Professor Pedro Brinca apontou, «que são no mínimo preocupantes», sendo que do ponto de vista jurídico, «também há motivos para preocupação». No que diz respeito a registos, João Vacas referiu que os registos de alojamento local deverão ser precedidos de decisões dos condomínios e, essa autorização, apenas pode operar se se verificar unanimidade entre os respetivos condomínios.

João Vacas, Consultor da Abreu Advogados.
João Vacas, Consultor da Abreu Advogados.

Recordou ainda que a assembleia de condóminos pode opor-se ao exercício de atividade num apartamento. A cessação de exploração implica a impossibilidade de o imóvel em questão ser explorado como alojamento, até deliberação em contrário. Como conclusões, «Mais habitação, não. Do ponto de vista do direito europeu, a lei não se adequa nem é conforme ao direito da EU, não densifica o objeto de política social, viola o espírito e a letra da diretiva dos serviços, viola as normas de direito primário originário, a própria carta dos direitos fundamentais etc. Portanto, Mais habitação, não. Parece que não será por aqui», completou João Vacas.

É realmente o alojamento local o culpado pela falta de casas?

Na mesa-redonda de debate, Nuno Trigo, Membro da Direção da ALEP e Coordenador da Delegação do Porto e Norte, referiu que tirou duas notas das apresentações da sessão de abertura do evento: «Primeiramente, de facto, cria-se uma boa narrativa. Na segunda-feira, tivemos os presidentes de câmaras de quatro dos principais municípios do concelho, em que dois terços do tempo foi a falar do Mais Habitação e do alojamento local. Diria que, noutras circunstâncias, isso seria motivo de satisfação para a ALEP. No entanto, a questão é que, na verdade, não resolve o problema da habitação». O responsável assinalou que o alojamento local «não é o culpado e vai ser muito grave no futuro que assim tenha sido o discurso, mas foi a narrativa criada».

Quanto à Contribuição Extraordinária sobre o Alojamento Local (CEAL), para 2024 «andará entre os 16 e os 31 euros, mas sabemos que o intervalo inferior praticamente não é aplicado, portanto vai andar entre os 24 e 31 euros». Para 2025, com efeitos a 2024, «estima-se que se pode chegar a 40 euros», portanto, «estamos a falar de algo que se não matar logo, mata-se», completou.

Ao ser questionado se de facto a instabilidade política que atravessamos tem algum impacto sobre o alojamento local, Nuno Trigo reiterou que a lei «está em vigor, é verdade que faltam regular alguns pontos, mas vamos partir do princípio que não vai ficar tudo bem. O Mais Habitação está em vigor e nós vamos continuar com a estratégia que estávamos a delinear, independentemente do que venha a acontecer».

"Uma lei que promove a habitação, mas convida as pessoas a estar 120 dias fora de casa"

Para Ricardo Valente, Vereador, Pelouro das Finanças, Atividades Económicas e Fiscalização e Pelouro da Economia, Emprego e Empreendedorismo da Câmara Municipal do Porto, esta «é uma lei que tem zero de lógica, pois é completamente trapalhona. É uma lei que promove a habitação, mas convida as pessoas a estar 120 dias fora de casa. E é uma lei que nos vai colocar a nós, município, a fiscalizar os 120 dias». Recorde-se que as unidades de alojamento local em habitação própria e permanente, cuja exploração não ultrapasse os 120 dias por ano, não vão ser sujeitas à caducidade do registo.

«Temos uma lei que é a típica estratégia de esconder uma brutal incompetência do ponto de vista da resolução de um problema grave do país. É muito fácil atirar para um terceiro a resolução de um problema que nos cabia a nós resolver», disse Ricardo Valente, acrescentando que «temos um problema muito claro no ponto de vista daquilo que é a responsabilidade que os políticos têm de ter perante os mandatos que lhe são concedidos, e isso é independente daquilo que é a força política que governa o país. Esta é a perspetiva de todos os países que têm desenvolvimento sustentável. Em Portugal é muito difícil ter uma lógica de gestão que não seja centralista, os municípios são tarefeiros daquilo que é o Governo central».

"Alojamento local foi fundamental para aquilo que foi a reabilitação urbana nas grandes cidades do país"

«A Câmara do Porto olha para a cidade enquanto cidade: o alojamento local foi fundamental para aquilo que foi reabilitação urbana nas grandes cidades do país. O nosso princípio é defender e promover a habitação no ponto de vista da cidade. Não havendo relação direta, é impossível proibir uma licença ao alojamento local, na nossa visão», enfatizou o vereador da Câmara do Porto.

Ricardo Valente referiu que, «em vez de termos o país de promover a oferta, estamos a criar um fantasma que até agora não existia». A Câmara do Porto, como é sabido, aprovou o fim do regulamento do Alojamento Local, devido à incompatibilidade com o Mais Habitação, neste sentido, «vamos agir do ponto de vista da Comissão Europeia, e atuar do ponto de vista dos aspetos da regulamentação desta lei, não vamos aceitar determinadas tarefas».

Do ponto de vista do grupo Wotels, «é fácil perceber quem nos trouxe até aqui», disse Nuno Constantino, CEO Wotels. Quando falamos em hostels, «que são alojamento coletivo, estamos a falar da prestação de serviço de aluguer da camas ou de quartos», sendo que «não estamos a falar de apartamento, portanto é muito pouco adequado à instalação de uma família».

Uma oferta de alojamento turístico heterogénea

O responsável indicou que «cerca de quase 100% dos hostels são geridos por empresas, ao contrário do AL, e 80% em edifícios arrendados», portanto «estamos a falar de empresas com empregados. Quem vai investir em edifícios de quase sempre acima de de 600 ou 800 metros quadrados, quando há um machado sobre a nossa cabeça de podermos encerrar a nossa atividade em 2030?», alertou. Analisando o setor, «compreendemos que as tendências no setor do alojamento turístico indicam que os consumidores apresentam perfis distintos, inclusive ao longo do ano. As pessoas têm padrões de consumo diferentes, portanto faz todo o sentido que a oferta de alojamento turístico, seja em hostels ou em alojamento local, seja também ela heterogénea».

"Existe um conflito evidente entre o direito nacional vigente e o direito europeu. A nossa própria constituição estabelece que o direito europeu tem de primar sobre o direito nacional”

Ao ser questionado sobre se tudo vai correr bem para os alojamentos locais, João Vacas, Consultor da Abreu Advogados, sublinhou que «não sabemos se a Comissão europeia intentará ou não uma ação, mas há um histórico bastante assertivo e um acompanhamento bastante rigoroso do que a Comissão faz, primeiro da transposição de diretivas». Neste momento, o que acontece, é que «fizemos uma coisa em termos de decisões judiciais: mudamos para pior, uma violação do direito europeu. Não me parece que, neste caso específico, havendo até reconhecido pelo nosso órgão legislativo, uma falta de fundamentação que estribe esta lei que está em vigor, que a Comissão não aja».

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